Um tributo à Michelly e uma lição de Oscar Wilde

Livro de Oscar Wilde, escrito em 1882 quando esteve na prisão por sua condição sexual, reflete a transfobia da época. Até quando Michellys serão mortas por serem quem são?

Livro de Oscar Wilde, escrito em 1882 quando esteve na prisão por sua codição social, reflete a transfobia da época (Foto: Reprodução de Internet)
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Na coluna Ler faz Bem desta semana, gostaria de prestar meu tributo à Michelly, travesti de 16 assassinada brutalmente no interior do Estado do Rio de Janeiro, como ViDA & Ação denunciou (veja aqui), comentando um livro de Oscar Wilde, intitulado De Profundis. Minha intenção é que reflitamos sobre nossa condição humana e sobre a importância de nos amarmos e respeitarmos uns aos outros.

Gostaria também que nos déssemos conta do que considero óbvio: o direito que cada um de nós temos de escolher com quem nos relacionar e o que fazer com nosso próprio corpo. Michelly foi morta há duas semanas, num sábado à noite, com cinco tiros. Suspeita-se que tenha sido assassinada por um cliente que teria se recusado a pagar pelo programa de R$ 50. Oscar Wilde morreu oficialmente de meningite, em 30 de novembro de 1900. Mas haviam-no matado em vida muito antes. 118 anos separam as mortes de ambos. Será!?

A travesti Michelly nasceu Luis Miguel Macedo Rodrigues, há 16 anos, em Itaperuna, cidade de 100 mil habitantes do Noroeste Fluminense. Aos 13 anos, iniciou seu processo de mudança de gênero, quando morava com a mãe em outra cidade pequena, São Francisco de Itabapoana, no litoral Norte Fluminense. Misturada ao período nada fácil da adolescência, a transição para a transexualidade em uma sociedade preconceituosa e cruel se tornava potencialmente ainda mais complicada.

Mas o processo de transição não ocorreu sem cuidados. Foi realizado sob supervisão e orientação profissional, passada à família. Sim.  Michelly tinha mãe, pai, amigos, parentes que choram por ela, desde então. Entra para a estatística como mais uma vítima entre a população LGBT. O Brasil mata trans a rodo. Mata mais que em todo o mundo: de 2008 a 2016 foram 868 assassinatos, segundo dados da ONG Trascender. Com 14 assassinatos de pessoas trans no ano passado, o Estado do Rio é o quinto no ranking desse tipo de crime no país, triste posição dividida com Pernambuco.

Preso e humilhado por ser homossexual

Oscar Wilde (1854-1900) foi escritor, poeta, dramaturgo. Ganhou inúmeros prêmios, era considerado um expoente da literatura inglesa. Respeitado e famoso em sua época, é o autor de ‘O Retrato de Dorian Gray’, de contos para crianças, como ‘Príncipe Feliz’ (sim, ele contava histórias para os filhos), entre outros. Em 1895, depois de três julgamentos, foi condenado a dois anos de prisão, com trabalhos forçados, acusado de homossexualidade, tipificado como crime até 1967, no Reino Unido onde nasceu o escritor.

Não adiantou a fama, não adiantaram a reconhecida genialidade de sua obra nem sua reconhecida inteligência brilhante. Foi humilhado, seus filhos tiveram que mudar de cidade e nome. Saiu da prisão em 1897. Refugiou-se em Paris, onde adotou o pseudônimo de Sebastian Melmouth, vivendo na miséria, em hotéis baratos, embriagando-se cada vez mais até morrer de meningite, esquecido e ignorado, em 30 de novembro de 1900. Contudo, já o haviam matado quando o condenaram por sua escolha sexual e continuam a matar trans pela mesma absurda razão, em 2018.

Das profundezas da prisão, uma reflexão sobre a sociedade

A prisão acabou com a saúde de Wilde. A mesma prisão onde escreveu o livro De Profundis. A expressão, latina, significa “das profundezas”, as palavras iniciais da versão latina do Salmo 130, que é recitado nas cerimônias fúnebres e no oficio dos mortos. De Profundis é uma longa carta ao amor de sua vida: Lord Alfred Douglas, apelidado Bosie. Embora critique o amado por tê-lo abandonado, Wilde, na obra, prega o amor, o perdão, legando-nos uma canção de respeito e amor à vida.

A obra percorre caminhos filosóficos e poéticos, além de iniciar uma longa e profunda reflexão sobre a sociedade, a arte, o sofrimento, o autoconhecimento, a vida de Cristo, a religião e a razão, a bondade dos pobres. O escritor afirma, por exemplo, que, no lugar pútrido em que se encontra, refletir sobre amor, flores, crianças, ética e pureza teriam-no levado a considerar um novo começo e uma melhora em seu estado depressivo. Escreve ele: “Passei mais de um ano nessa prisão já, mas a humanidade também estava aqui conosco (…). Sei que é possível suportar sem demasiado ódio no coração e que talvez eu saia daqui com algo que não possuía antes”.

Michelly nasceu em 2002. Wilde em 1854. 148 anos os separam. Contudo, a ojeriza burra, tola e inaceitável de muitos de nós pelas suas opções sexuais os aproximam e devem nos encher de vergonha como seres humanos. Minha esperança é que a lição de amor que Oscar Wilde nos deixou, ajude-nos a deixar todas as Michellys viverem em paz, sem discriminações, críticas ou qualquer tipo de humilhação.

SERVIÇO:

De profundis - L&PM Pocket

Livro: De Profundis

Autor: Oscar Wilde

Editora: L&PM Pocket

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