Covid-19: entre mortos e doentes, em que mundo vive o Ministério da Saúde?

Brasileiro tem quase 4 vezes mais risco de morrer de Covid-19 que no resto do mundo, mas governo brasileiro insiste em contar os curados

Imagem de Joshua Woroniecki por Pixabay
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Dia desses a amiga de uma amiga falou que já somos o país com mais curados da Covid-19. Oi? Quase chorei de vergonha alheia – porque não dá pra rir disso. Nem precisa dizer que é negacionista e bolsonarista. Mas o arroubo ilusório da moça nos remete aos tempos difíceis que vivemos desde que pouco mais de um quarto da população decidiu eleger um lunático para o poder central. E para muitos nem a trágica posição brasileira no cenário mundial da pandemia da faz cair a ficha.

Enquanto o Brasil segue como o segundo do mundo em números da Covid-19 – com quase 9,5 milhões de casos e 231 mil mortos -, a pasta responsável por gerenciar a pior crise sanitária do último século continua ignorando a realidade. Nos comunicados enviados à imprensa e disponível em seu site, o Ministério da Saúde prefere enfatizar os curados: precisamente 8.363.677 milhões de pessoas (88,1% dos casos acumulados), de acordo com o último balanço divulgado na noite de sábado (6/2).

O surto surrealista na comunicação da pasta começou desde que o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta foi defenestrado do cargo para dar lugar ao decorativo Nelson Teich, substituído em seguida pelo general do Exército Eduardo Pazuello, hoje investigado por suspeita de omissão no colapso da saúde em Manaus. E todo dia é a mesma coisa nas caixas de mensagens de milhares de jornalistas, blogueiros, influenciadores e sabe-se lá quem mais recebe os tais boletins, amplamente divulgados no site oficial.

Na lógica da contabilidade do Ministério, mais importante não são as vidas perdidas para a doença por conta do mau gerenciamento da crise desde o princípio – como pensa e age aquele que manda e o ministro obedece – , mas sim exibir como troféus os números de vidas que, supostamente, o governo conseguiu ‘salvar’, seja no sistema público, seja no sistema privado de saúde – como se as mesmas não corressem mais nenhum risco de infecção.

Detalhe: em nenhum país do mundo essa conta inversa existe, com tanta publicidade oficial. Ao contrário. Somos conhecidos lá fora como o pior país a gerenciar a maior crise sanitária da Humanidade. Um título que certamente é ostentado com orgulho por aquele que pensa que OMS, ONU e todos os que lucidamente defendem a ciência são todos “mancomunados” com o “Petê ” para derrubar o seu “probo e austero” (des)governo.

Pela contabilidade controversa do Ministério, o número de curados até o momento é muito maior do que o número de pacientes em acompanhamento médico, que é de 903.106 casos ativos. E lá quase no pé do release, é possível entender que até a noite de sábado (6/2), o Brasil registrou 9.497.795 milhões de casos confirmados da doença, sendo 50.630 nas últimas 24 horas, com 978 novas mortes, o que soma 231.012 mortes por coronavírus.

E isso sem contar o Estado do Rio Grande do Norte, que só enviará seus dados na segunda-feira (8/2) – ou seja, de novo, certamente passamos de mil casos por dia. Do total, 650 óbitos ocorreram nos últimos três dias. Outros 2.802 permanecem em investigação. Isso mesmo que você leu: quase 3 mil mortes suspeitas registradas no país ainda necessitam ser esclarecidas!

Ainda de acordo com o MS, seguindo sua matemática da morte pelo avesso, “a doença está presente em 100% dos municípios brasileiros; contudo, mais da metade das cidades (3.951) possuem entre 2 e 100 casos. Em relação aos óbitos, 5.104 municípios tiveram registros (91,6%), sendo que 814 deles apresentaram apenas um óbito confirmado”. Como assim, “apenas” um óbito? Todas as vidas não importam?

Em nenhum momento lê-se no texto oficial do governo qualquer referência ao ranking internacional, em que o país figura, há meses, como o vice-líder em casos e mortes por Covid-19, atrás apenas dos Estados Unidos. E a matemática real pode ser ainda mais cruel e dolorosa. O Brasil “é um dos países mais mortíferos da pandemia em todo o mundo, se forem levadas em conta a composição demográfica e etária brasileira“, como mostrou a BBC News Brasil na semana passada.

Covas sendo abertas em cemitério de Manaus, em 31 de dezembro de 2020
Covas sendo abertas em cemitério de Manaus, em 31 de dezembro de 2020; Brasil registrou quase 195 mil mortes por Covid-19 no ano passado (Foto: BBC Brasil)

De acordo com a reportagem, o Brasil fica em 10ª pior posição entre 179 países analisados pelo economista Marcos Hecksher, pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Do total, 169 países (ou seja, 95%) registraram taxas menores do que a do Brasil em mortes por Covid-19 em 2020. Isso quando se comparam não só os números absolutos de mortes em cada país, mas o tamanho da população e os óbitos em cada faixa etária, a partir de dados da OMS, da ONU e do Ministério da Saúde do Brasil.

Ou seja, só nove países – Peru, México, Belize, Bolívia, Equador, Panamá, Colômbia, Macedônia do Norte e Irã – estariam em uma situação pior do que a brasileira se os cidadãos tivessem morrido na mesma proporção, por sexo e por idade, em que morreram no Brasil. “Isso significa que 95% dos países (analisados) tiveram resultado melhor que o Brasil no combate à Covid-19 em 2020 quando se leva em conta a demografia de cada um”, aponta Hecksher.

É importante destacar que em número de mortes, países europeus passaram à frente do Brasil porque têm um número proporcionalmente alto de mortes em relação ao tamanho de sua população. O Brasil aparece em 12° lugar em número de mortes por 100 mil habitantes no levantamento mais recente da Universidade Johns Hopkins, liderado por Reino Unido e seguido pela República Tcheca e a Itália. Mas Marcos Hecksher pondera que países europeus e os EUA têm uma população com maior percentual de idosos do que no Brasil, portanto, muito mais suscetível a adoecer gravemente quando infectada pelo coronavírus.

Na semana anterior, o Instituto Lowy, da Austrália, colocou o Brasil na lanterna do ranking de gerenciamento da pandemia entre 98 países analisados, que colocou a Nova Zelândia como o melhor desempenho – 94,4 pontos contra os parcos 4,3 brasileiros. Durante 36 semanas foram mensurados seis critérios: números de casos de covid-19, mortes, casos por 1 milhão de pessoas, mortes por 1 milhão de pessoas, casos confirmados em proporção aos testes, e quantidade de testes por mil habitantes. Foram levados em conta ainda os níveis de desenvolvimento socioeconômico e tamanho da população.

Uma vergonha, dirão muitos, ou uma tragédia? Resta-nos chorar e entregar nossas esperanças nas mãos dos cientistas e todos os funcionários da cadeia produtiva da vacinação que aceleram em busca de ampliar a produção das doses até agora disponíveis no Brasil – porque esperar dos nossos políticos ficou difícil com Câmara e Senado nas mãos do mau gestor. E rezar para que outras vacinas sejam aprovadas por nosso órgão regulador, a Anvisa, e colocadas à disposição da população o mais imediatamente possível por estados e municípios. Precisamos voltar a respirar. Quem (sobre)viver, verá!!!

Gráfico das mortes
A cada morte por covid-19 no Brasil em 2020, levando-se em conta sexo e faixa etária, ocorreu 1,42 morte no Peru e 0,0005 no Vietnã

Com BBC News Brasil

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