‘Mãe arrependida’: quem nunca? A maternidade real na vida e no palco

Peça ‘Mãe arrependida’, escrita e interpretada por mãe que acolhe outras mães em sofrimento com a ‘maternidade compulsória’, é sucesso no Rio

Mãe aos 27 anos de Flor Inaê, hoje com 13 anos, atriz e escritora Karla Tenório revela amar a filha e detestar maternidade (Fotos: Reprodução de instagram)
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Uma mãe pode se arrepender de ser mãe? A resposta – que pode chocar muitas pessoas – é uma só: sim, pode, e por que não? Na verdade, uma mãe arrependida não está abrindo mão de ser mãe, ela não desama seus filhos. Ela só não suporta o peso imposto pelo patriarcado ao longo de séculos que oprime, sufoca e escraviza a mulher que se torna mãe. E não tem nada de errado nisso.

É o que nos confirma ‘Mãe Arrependida’, peça que fui assistir na tarde deste sábado friorento e chuvoso no Rio de Janeiro e que encerra sua curtíssima temporada no Centro Cultural Justiça Federal, na Cinelândia, neste domingo (30/7) – corra que ainda dá tempo de garantir o ingresso pelo Sympla.

Tudo começou quando a niteroiense Karla Tenório, então com 38 anos, mãe de Flor Inaê, uma linda menina de 10, deu uma  entrevista ao Universa, do Uol, às vésperas do Dia das Mães de 2021, confessando o que para muitos soou como um escândalo: “Sou uma mãe arrependida desde o parto da minha filha”.

Muitos a aplaudiram, outros jogaram pedras – a internet tem dessas coisas, como certamente ocorrerá com essa matéria e suas repercussões. A atriz e escritora dava voz ali a milhares de mulheres que, silenciosamente, convivem com o drama das inúmeras obrigações que o papel de mãe impõe.

“São mães que não são felizes como mães, que sofrem e sentem culpa por conta da maternidade”, diz Karla. O movimento Mãe Arrependida, nascido em abril de 2021, hoje tem mais de 54,5 mil mulheres ao redor do mundo em seu perfil no Instagram.

Brasil tem 11 milhões de mães solo e muitas crianças desconhecem os pais

 

Muitas dessas mulheres criam os filhos sozinhas, com todos os encargos que isso traz. Afinal, na sociedade patriarcal, aos homens tudo é permitido – inclusive abandonar afetiva, material e moralmente os filhos.

E as estatísticas estão aí para escancarar a realidade. Já são mais de 11 milhões de mães solo no Brasil e a plataforma Pais Ausentes informa que desde 2016, mais de 1,12 milhão dos 20,4 milhões de crianças registradas no país não levam os nomes dos pais na certidão de nascimento.

Mas a ideia de montar a peça com apoio do atual marido, Fábio Toreta, veio antes, ainda durante a pandemia, quando Karla ficou abalada com o caso de uma mulher que se jogou de um prédio com seu bebê no colo. A tragédia foi decisiva para a atriz falar do que a atormentava há anos, desde o nascimento de Flor, quando ela própria pensou em fazer o mesmo.

Conforme confessou à revista Marie Claire, Karla teve psicose pós-parto. Com o passar do tempo, transformou sentimentos de medo, insegurança, solidão e abandono em superproteção à filha.

“Num primeiro momento é depressão. Depois o arrependimento se traduz em sintomas de medo, ansiedade,  tristeza, solidão e falta de propósito na vida, todos silenciados pela culpa”, explicava.

Peça aborda saúde mental de mães solo e seus filhos

‘Mãe Arrependida’ – o espetáculo – é um solo teatral criado por Karla para “impactar positivamente e transformar o paradigma da maternidade compulsória imposto pelo patriarcado no âmbito social”. Descontrói a ideia do amor incondicional, quebra o mito da mãe ideal ou do que a própria mulher espera de sim mesma ao se tornar mãe.

O tema traz uma carga enorme de complexidade sobre a saúde mental materna, que é demonstrada por números e relatos reais de mulheres ouvidas por Karla e trazidos ao espetáculo.

Essa realidade pode ser ainda mais cruel com muitas mães e seus filhos – que, tais quais suas genitoras, também adoecem mentalmente. Não à toa, a peça inclui até momentos de autorreflexão, quase uma ‘roda de cura’ (ops, dei spoiler?!).

O monólogo – muito bem conduzido por Karla – faz rir, faz chorar e faz refletir – e muito – sobre a maternidade compulsória imposta na cultura patriarcal em que vivemos. Qual mulher depois dos 30 ou 40 anos nunca se sentiu cobrada por não ter filho?

Sem dúvida, a montagem mexe muito com as mulheres e as mães em especial – e a eterna culpa que carregamos no peito – seja para ser mãe, seja por não ser a mãe que nós próprias idealizamos que deveríamos ser. Não, não temos culpa. A culpa também nos foi imposta – e precisa ser desconstruída. E que atuais e futuras gerações de meninas, mulheres e mães se vejam livres dela, com seus direitos reprodutivos garantidos.

O debate das ‘mães arrependidas’ é para todos nós

Mas engana-se quem pensa que a peça é só para mães que passaram ou estão vivenciando situações dramáticas na experiência da maternidade. ‘Mãe arrependida’ vale para quem nunca teve filho, para quem já abortou (sim, porque esse é outro tema que devemos falar, sem tabus, né, gente), para quem é filha/o, para quem é pai, para quem é marido/a… Enfim, vale para todo mundo.

Afinal, esse sofrimento solitário das mães arrependidas precisa ser mais compartilhado, discutido e debatido em nossa sociedade. Afinal, de quem é a culpa de não querer uma maternidade imposta por uma série de crenças, mitos e construções equivocadas?

Como mãe de filha única há mais de 17 anos, 10 deles solo, confesso que me vi representada em muitas cenas e situações – quem nunca? Somos mães sobrecarregadas, muitas e muitas vezes sozinhas nessa jornada, sem rede de apoio ou sequer quem ouça e acolha nossas dores sem julgamentos.

Na fase da adolescência, quando nossas meninas crescem e se tornam mulheres, vivenciamos dramas no dia a dia talvez ainda mais complexos e difíceis, que certamente Karla ainda não pôde experienciar com sua cria, hoje com 13 – e, portanto, ainda não vimos nessa versão do espetáculo – quem sabe em próximas? Fica a dica!

O espetáculo ‘Mãe Arrependida’ estreou pelo Zoom em 2020, teve sua primeira temporada nos palcos em 2022, em Niterói, e desembarcou aqui ‘do outro lado da poça’ no dia 8 de julho para a curtíssima temporada que termina neste domingo (30/7). Nem precisa dizer que vale a pena. Apenas vá.

Outro spoiler: diante do sucesso, já se fala de uma nova temporada em breve – já para setembro, talvez, em espaço ainda não divulgado. A confirmar – e conferir!

Saiba mais sobre a peça no site Sopa Cultural

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